12 setembro, 2021

Juscelino Kubitschek


UM CIRURGIÃO NO FRONT

O ingresso de Juscelino na Medicina deu-se no ano de 1922, na cidade de Belo Horizonte, através da Universidade Federal de Minas Gerais. O talento para o ofício de cirurgião foi notado. Segundo Bojunga (2001):

Os colegas perceberam logo a vocação de Juscelino para cirurgião. Chegaram a fazer uma quadrinha, aproveitando o nome do grande violonista tcheco Jan Kubelík, o pai de Rafael Kubelík: Dois nomes eu estou certo/Vão pôr este  mundo em cheque/No violino Kubelík/No bisturi Kubistchek (BOJUNGA 2001, p. 73).

O bom desempenho no exercício da profissão fez com que Kubistchek logo adquirisse uma boa clientela em Belo Horizonte e isto possibilitou uma especialização em Paris, na qual foi aluno do doutor Maurice Chevassu, famoso urologista, além de estágios em Viena e em Berlim (COHEN, 2006).

A volta a Belo Horizonte deu-se no contexto do Governo Provisório de Getúlio Vargas, após a Revolução de 1930. Naquele momento, havia o intuito de melhoria da Polícia Militar do estado, à epoca Força Pública, através de ações do Secretário do Interior, Gustavo Capanema, decorrente da atuação dos militares estaduais em apoio ao  movimento varguista de 1930. Destaca-se, nestas ações de Capanema, a reestruturação do Hospital da instituição. 

Conforme Bojunga (2001):

Uma das providências de Capanema foi transformar o velho Hospital Militar em centro médico moderno, dotado de orçamento próprio e com uma equipe de médicos de renome. Embora o provimento dos cargos dependesse, em princípio de concurso, Capanema tinha em mente médicos de notória reputação que não se submeteriam a provas.

[...]

Um pedido de dona Luísa Lemos, mãe de Sarah, a Gabriel Passos, seu outro genro, incluiu Juscelino na lista dos nomeados. O marido de Sarah foi encarregado de organizar o Serviço de Laboratórios e Pesquisas, nos moldes do que vira na Europa, assumindo em seguida a chefia do Serviço de Urologia, no posto de capitão-médico (BOJUNGA, 2001, pp. 90 e 91).

O início de Juscelino na Força Pública Mineira foi decorrente, portanto, da atuação destacada como médico em Belo Horizonte e as capacidades seriam colocadas à prova durante os embates na Mantiqueira, ao lado dos combatentes mineiros que lutavam pelo controle do estratégico túnel.

Juscelino no Setor do Túnel

A necessidade da criação de uma subseção do Serviço de Saúde na região do Túnel foi decorrente, conforme descrição do responsável, major chefe, Dr J. Santa Cecília, da rude e intensa luta travada naquele local, que gerou atropelo e desorganização iniciais na assistência aos feridos (SANTOS,1933). 

Neste cenário, com  o acirramento das hostilidades, Juscelino partiu para a região do Túnel da Mantiqueira. Segundo Bojunga (2001):

No dia 16 de julho, Juscelino recebeu um telefonema anunciando que ele deveria embarcar às quatro da manhã na Estação do Horto, com o 1º Batalhão, sob o comando do tenente-coronel Francisco de Campos Brandão. Tinha seis meses de casado. A ração no três dias de viagem era à base da carne seca, que provocaca uma sede insuportável. Quando chegaram a Passa Quatro, no dia 18, a cidade já havia sido retomada pelo coronel Eurico Gaspar Dutra, mas a situação ainda era incerta (BOJUNGA, 2001, p. 98).

A estrutura do Serviço de Sáude daquele setor era composta por um Trem Hospital com raios x e Farmácia, Hospitais de Evacuação, transporte de doentes e Hospitais de Retaguarda (SANTOS, 1933). Ao chegar, recebeu como primeira missão do comandante, tenente-coronel Brandão, a instalação de um hospital do sangue, na Casa de Caridade, em Passa Quatro, que permitiu a organização de uma sala de operações. 

Heliodoro (2005) descreve uma das atuações de Juscelino, mesmo sob condiçoes adversas, no hospital de sangue:

Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, o capitão-médico Dr. Juscelino Kubitschek tornou-se famoso por haver operado um sargento que, gravemente ferido, foi deixado ao abandono pelos médicos, em virtude da absoluta falta de recursos no Hospital de Sangue da Polícia Militar de Minas Gerais, no front da Mantiqueira, no início das operações bélicas naquela região, na cidade de Passa Quatro.

Juscelino entretanto, prontificou-se em atendê-lo, mesmo sem recursos, para não deixa o homem morrer sem assistência.

Acontece que o tal sargento, que já era considerado morto, ficou bom e em pouco tempo já estava andando (HELIODORO, 2005, p. 75).

A precariedade deste hospital reforça o desempenho de Juscelino no socorro aos feridos, pois não havia anestesia - a necessidade foi suprida pela atuação de um veterinário orientado pelo capitão-médico  nem, tampouco, enfermaria, com o papel sendo desempenhado por uma freira, conforme FIGURA 1, que atuara na assistência religiosa, na 1ª Guerra Mundial, ao lado dos franceses (HELIODORO, 2005).

FIGURA 1  JK no Hospital de Sangue

FONTE: MAYRINK, 1988, p. 21.

Ainda sobre a atuação no Hospital do Sangue, Arruda (2016) descreve que Juscelino realizou por volta de mil atendimentos, entre pessoas enfermas, feridas e convalescentes, sem se preocupar em que lado lutavam, numa sala improvisada para cirurgia, com a utilização de clorofórmio como anestésico e recursos escassos, sempre com dedicação e louvor.

Segundo Santos (2003), apesar da imprecisão de alguns dados acerca dos atendimentos neste hospital, esse detalhe é irrelevante em relação à grande soma de trabalho realizada pelos doutores Pinto de Moura e Juscelino Kubistchek, ao assistirem grande massa de feridos, num hospital de emergência, sem secretaria organizada.

As condições do Hospital de Sangue fez com que parte dos atendimentos fossem transferidos para o Trem Hospital, trazido de Belo Horizonte, e colocado mais próximo ao front, nos dias finais de julho, conforme FIGURA 2. Contava, segundo relato do doutor J. Santa Cecília, major chefe do Serviço de Saúde daquele setor, com toda a aparelhagem sanitária, farmácia e raio x, além de uma equipe técnica competente (SANTOS, 2003).

 FIGURA 2 JK nas proximidades do Trem Hospital


 Fonte: FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 1982, p. 43.

A melhoria substancial dos atendimentos ocorreria de fato com a chegada deste Trem, em que dois vagões foram transformados em sala de cirurgia, nos quais Juscelino atendia até mais de quarenta feridos por dia, não perdia a calma, tratava a todos com impecável educação, inteligência e discrição e se tornou destaque do Serviço de Saúde (MARQUES, 2002). 

A soma das operações no Trem Hospital chegou a cinquenta e quatro, com o registro de cinquenta e um feridos. Entre essas operações, foram realizadas sete laparotomias  cinco causadas por projéteis, uma por ferimento perfuro-cortante e uma por apendicite  e, destas, quatro foram realizadas por Juscelino Kubistchek (COTTA, 2006).

A atuação foi destacada pelo tenente-coronel Magalhães Goés, então chefe do Serviço de Saúde da Força Pública Mineira. Segundo Santos (2012):

Cirurgião do Hospital de Passa-Quatro  temperamento de slavo, calmo, modestíssimo, em extremo disciplinado, resistência de aço para, num só dia, socorrer mais de 40 feridos, sem se esfalfar, foi a grande revelação do Serviço de Saúde. Mostrou-se um ótimo cirurgião, um improvisador de meios para uma boa assistência aos grandes feridos de guerra, com impecável educação, inteligência e maneira discreta. O seu elogio pode ser resumido, transportando-se para aqui o pedido de oficiais do Exército que, ao partirem para a frente, solicitavam terem-no como cirurgião, no caso de ferimento em combate (SANTOS, 2012, p. 115).

Em meados de setembro, a batalha era favorável às tropas mineiras e, em carta a Gabriel Passos, oficial de gabinete de Olegário Maciel, Juscelino exaltou a atuação em um confronto decisivo contra os paulistas e classificou as ações dos soldados como heróicas, que tiveram como consequência o recuo das tropas inimigas (BOJUNGA, 2001). 

O recuo, entre os dias 12 e 13 de setembro, ocorreu através de intensa movimentação no lado do túnel ocupado pelos paulistas que, na euforia da retirada, deixaram para trás diversos veículos, armamentos e equipamentos.  A rendição ocorreu, conforme Santos (2016), no dia 03 de outubro, na cidade de Cruzeiro, após mais uma tentativa de cessar-fogo proposta pelos revoltosos.

O fim das hostilidades fez com que a Brigada em que Juscelino servia rumasse para o Setor Centro, em apoio à Brigada Amaral. Em decorrência, o capitão-médico foi responsável pela remoção de feridos de Passa Quatro para Guaxupé e Varginha e, posteriormente, dirigiu-se até a cidade de Campinas, para o quartel-general do comandante Barcellos.

 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os quase dois meses de participação de Juscelino na Batalha do Túnel foram responsáveis por inseri-lo num ambiente diverso daquele em que atuava rotineiramente no Hospital da Força Pública, em Belo Horizonte, decorrente da hostilidade e precariedade presentes no cenário em que foi obrigado a atender e operar.

A atuação é destacada justamente por ter sido realizada de maneira abnegada e eficiente, mesmo sem a existência completa de recursos necessários, comprovada por dados que demonstram a quantidade de combatentes assistidos pelo médico mineiro, durante o tempo em que permaneceu na região do conflito, considerado como a grande novidade naquela batalha, decorrente da segurança e dos bons cuidados médicos, nas palavras de um dos biógrafos, Affonso Heliodoro.

Na História da Polícia Militar de Minas Gerais, à época dos acontecimentos conhecida como Força Pública, a referência de Juscelino como membro dessa Corporação parece sempre remontar à participação na Revolução Constitucionalista de 1932, em obras publicadas pela instituição, como a produzida pelos alunos do Curso de Formação de Soldados¹, ligadas a ela ou de autores independentes, nas quais há destaque para a contribuição à combatividade das tropas mineiras empregadas no front.

A trajetória de Juscelino na Mantiqueira rendeu a ele  alcunha de bisturi de ouro pela instituição, além da nomeação do Hospital da Polícia Militar como Hospital Juscelino Kubistchek de Oliveira. Apesar do cirurgião-médico ter alcançado o posto de coronel, mais um dos indícios da importância e reconhecimento, a atuação no Túnel foi seguida do início da trajetória política, em 1933, após a nomeação como chefe de gabinete de Benedito Valadares, interventor de Getúlio Vargas, nas Minas Gerais.

O artigo pode servir de referência, portanto, para estudos posteriores acerca da participação de Juscelino como médico das tropas mineiras, além da possibilidade da relação entre esta atuação e o início da vida política, que resultaria no alcance da Presidência da República, na década de 50.


REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Gustavo de Freitas. 1932: quando São Paulo foi à luta. Disponível em: https://www.ebrevistas.eb.mil.br/index.php/adj/article/download/1033/1045/ Acesso em 03 de novembro de 2018.

ARRUDA, Lauro. Juscelino Kubistchek (JK): o médico que virou Presidente da República. Disponível em: https://www.hospitaldocoracao.com.br/wp-content/uploads/2016/01/juscelino-kubistchek.pdf/ Acesso em 03 de fevereiro de 2019.

BOJUNGA, Cláudio. O artista do impossível. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, 800 p.

BRASIL. Decreto nº. 13398, de 11 de novembro de 1930. Institue o Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, e dá outras providências. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União, 1930.

CAPELATO, Maria Helena. O Movimento de 1932: a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981, 89 p.

COHEN, Marleine. JK. São Paulo: Globo, 2006, 111 p.

COTTA, Francis Albert. Breve história da Polícia Militar de Minas Gerais. Belo Horizonte: Crisálida, 2006, 168 p.

DONATO, Hernâni. História da Revolução de 32. São Paulo: IBRASA, 2002, 153 p.

FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. 16 ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2010, 82 p.

FONSECA, Sherloma Starlet. Memórias de um constitucionalista: Paulo Duarte e a Guerra Civil de 1932. 2009. 136 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2009.

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Revolução de 32: a fotografia e a política. Rio de Janeiro, 1982, 62 p. 

HELIODORO, Afonso. JK: exemplo e desafio. 2 ed., rev. e aumentada. Brasília: Thesaurus, 2005, 282 p.

MARCO FILHO, Luiz de. História Militar da PMMG. 7. ed. Belo Horizonte: Centro de Pesquisa e Pós-graduação PMMG, 2005, 151 p.

MARQUES, Rita de Cássia. JK, de médico a político. In:___. JK: o estadista da modernidade, 1902 2002. Belo Horizonte: CEMIG, 2002. Não paginado. 

MAYRINK, Geraldo. Os grandes líderes: Juscelino. São Paulo: Nova Cultural, 1988, 112 p.

MINAS GERAIS. Secretaria do Interior. Boletim n. 1. Belo Horizonte, 1932.

NUNES, Vanessa. Revolução Constitucionalista de 1932: articulações de um movimento. 2005. 27 f. Artigo (Pós-graduação em História: sociedade e cultura brasileira) Universidade Paranaense, Cascavel, 2005.

POLICIAIS militares protagonistas da História. Belo Horizonte: O lutador, 2016, 250 p.

RODRIGUES, João Paulo. O levante constitucionalista de 1932 e a força da tradição: do confronto bélico à batalha pela memória (1932 1943). 2009. 349 f. Tese (Doutorado em História) Universidade Estadual Paulista, Assis, 2009.

SANTOS, Edmundo Lery. Movimento de 9 de julho de 1932. Imprensa Oficial de Minas Gerais: Belo Horizonte, 1933, 306 p.

SOARES, Júlio César Fidelis. Calibre 32: Resende em armas. Disponível em: <https://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/CALIBRE32.pdf/> Acesso em: 02 de novembro de 2018. 


 Jamicel Francisco Rocha da Silva

jamilico@gmail.com



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