15 outubro, 2021

PALAVRAS DE UM COMANDANTE: A Promoção dos Revolucionários de 1924, 1930 e 1932

           Outubro/2021 – 40 anos da sanção da Lei n. 8.070, de 3/10/81


Corramos para as bandas do oeste mineiro, agora de carro, pela BR 262, toda asfaltada, e, após mais ou menos duas horas, avistaremos, à nossa direita, uma grandiosa e majestosa matriz, anunciando que estamos chegando à cidade de Bom Despacho. Hoje é uma cidade de médio para grande porte, com um comércio intenso, com grande movimento de carros e caminhões, movimentada, agitada, com semáforos para todo o lado, com muitos prédios e economia forte e crescente. Nem sempre, porém, foi assim. Na minha infância, era uma cidadezinha bucólica, pacata, onde todos se conheciam, e a criançada, de pés descalços, peito e braços nus, corria pelas ruas não asfaltadas, fazendo aquelas travessuras próprias da idade e de uma infância feliz.

É desta cidadezinha bucólica, que, graças ao trabalho e a dedicação de seus munícipes, vai tornando-se grande, que sempre me foi e continua sendo muito querida, que eu venho.

Venho, pois, da Cruz do Monte, da Tabatinga, do Campinho do Candinho, da Rua do Céu. Venho da Praça da Matriz, onde reinava, majestosa, a bonita igreja, dedicada à Nossa Senhora do Bom Despacho, da Rua do Rosário – onde tomei água da biquinha –, da Rua da Fábrica, do Açude e da Estação da Rede Mineira Viação (RMV) onde fazia peripécias perigosas; enfim, de muitos outros lugares, que ainda me são gratos à memória.

Venho do “Grupo Escolar Cel. Praxedes” – único grupo que havia na cidade –, onde estudei e tive a melhor professora dentre todos os cursos que fiz, quer aqui, quer no exterior, e de cujo nome me relembro sempre com saudade e muita gratidão: Professora Zulma Correa Lacerda. Além de ser a melhor professora, ela era sábia e enérgica, mas, sobretudo, solidária, amiga e ajudava seus alunos, em todos os sentidos. Sempre que viajava à Bom Despacho, mesmo como Comandante-Geral, ia a sua casa fazer-lhe uma visita e render-lhe minhas homenagens.

Venho, sobretudo, da Vila Militar, em cujo portão das armas cintilava o dístico: 7º Batalhão de Caçadores Mineiros (7º BCM).

A Vila Militar tinha um terreno amplo e era muito bem cuidada. Registro o majestoso e principal prédio, cuja miniatura me foi ofertada, em comovente homenagem, que a generosidade do bom amigo, Cel. Gentil Alberto de Menezes, me prestou, em nome da guarnição de Bom Despacho. Registro, ainda, as instalações das Companhias, uma pracinha ajardinada, com um coreto, onde meninas e meninos brincavam, os bangalôs, destinados à moradia dos oficiais, no fim dos quais havia uma capela, destinada à Santa Efigênia dos Militares, e logo abaixo as casas destinadas à moradia dos praças e, ao lado, extra muros, um campinho, onde os meninos, com os pés descalços, arrancavam tocos, jogando futebol com bolas de meia.

O importante, porém, para o tema que abordo, é que nós, os meninos da época, tínhamos acesso irrestrito às dependências do Batalhão. Ninguém nos impedia. Às vezes, um ou outro ouvia um “sai daqui, menino”. Todos se conheciam e sabiam quem era filho de quem.

Assim, eu ia ouvindo daqueles policiais militares as histórias da sua participação e da bravura do 7º Batalhão na Revolução de 1932. Falavam que, chegando ao local, entraram logo em combate e que balas ricocheteavam por todos os lados. Falavam de companheiros mortos e feridos, da morte do Comandante do Batalhão, das dificuldades e dos perigos que enfrentaram.

A barbearia era o meu ponto preferido. Costumava sentar-me lá e, “de olhos arregalados”, ouvir aquelas histórias, umas até mais pormenorizadas. Cheguei, inclusive, a ouvir comentários, entre os militares que ali frequentavam, de que haveria uma promoção extra para todos os elementos da Corporação, que teriam participado da Revolução, o que não aconteceu.

Interpelava, às vezes, meu pai, sobre o assunto, e ele me dizia, superficialmente, que os fatos eram reais, que eles passaram por muitos perigos e dificuldades e que muitos companheiros tinham-se ferido e muitos morreram.

Saí de Bom Despacho para estudar. Entrei para a Polícia Militar de Minas Gerais, fiz toda a minha carreira, encerrando-a como juiz do Tribunal de Justiça Militar.

Hoje, graças ao bom Deus e à Nossa Senhor Mãe dos Homens da Serra do Caraça, onde estudei, estou eu aqui para alinhavar essas despretensiosas considerações sobre fato importante e emocionante do meu comando, ou seja, como conseguimos a promoção dos  revolucionários de 1924, 30 e 32.

Já era eu oficial, tenente-coronel, talvez, quando, certo dia, me apareceu meu pai, dizendo-me que queria escrever uma carta ao Cel. Paulo René de Andrade, que estaria escrevendo um livro sobre a Revolução de 1932. Consultou-me se seria inconveniente encaminhar a carta. Li-a. Disse-lhe, então, que não via inconveniente algum, mesmo porque os fatos eram reais e o Cel. René era um ótimo historiador e caberia a ele a conveniência, ou não, de colocar a carta em seu livro e o que ele decidisse estaria bem decidido. Não tirei nem acrescentei uma vírgula sequer na carta. A redação é pessoal e toda dele.

Essa carta está publicada à página 397 do Vol. II do livro “As Três Revoluções”, do Cel. Paulo René de Andrade, no subtítulo “Anexos”, pág. 379, que contém vários documentários e relatos sobre o evento.

Tomo a liberdade de transcrever aqui, ipsis litteris, como um justo e filial culto à memoria de meu pai, simples soldado da 3ª Cia do 7º Batalhão de Bom Despacho.

 
CARTA DO CAP. JOSÉ FORTES COUTINHO RELATANDO 
COMO SE DEU A MORTE, 
EM COMBATE, DO TEN.-CEL. FULGÊNCIO SOUZA SANTOS

 

“Belo Horizonte, 20 de outubro de 1977. – Sr. Cel. Paulo René – Tive muito prazer em ler o seu livro "Três Revoluções", 1.° volume, e fiquei, sinceramente, emocionado ao relembrar fatos passados com a nossa velha P.M. e os nomes de tantos amigos e companheiros, alguns já mortos, que tanto lutaram pela nossa Corporação. 

Sabendo que o senhor vai publicar um segundo volume, sobre 1932, campanha da qual participei, tomei a liberdade de lhe enviar este pequeno relato, quanto à morte de um nosso bravo comandante, o Ten.-Cel. Fulgêncio de Souza Santos, fato que assisti, pois estava a poucos passos dele, quando foi ferido, na linha de frente do Túnel. 

Quando estourou a revolução paulista eu era um simples soldado (Praça n.º 5.704) – da 3.ª Companhia do 7.º Batalhão, em Bom Despacho, e segui com meu batalhão, comandado pelo Cel. Edmundo Lery Santos, para o Sul de Minas, o qual já se achava invadido pelos paulistas.

Tão logo chegamos a Manacá, estação próxima do Túnel, fomos logo entrando em combate, pois que a tropa do nosso 3º Batalhão estava sendo flanqueada. 

Logo aí nosso comandante, digo, nosso subcomandante, o Major Valdemar Batista dos Santos, foi baleado quando atravessava um claro, no leito da via férrea, mas foi logo socorrido pelos padioleiros. 

Ficamos em combate permanente, em posições desvantajosas, pois nosso batalhão foi obrigado a tomar posição em terreno baixo enquanto os paulistas, na parte alta, nos castigavam com seu fogo constante. 

Nessa posição perdemos muitos companheiros, feridos e mortos, entre eles os colegas Nicanor Francisco Neves e Melvindo Rocha Fagundes. 

O Cel. Lery Santos, tendo sido designado Comandante da Brigada, passou o comando do batalhão ao Ten.-Cel. Fulgêncio, tendo este recebido ordens de preparar um avanço, notícia que não foi recebida com muito agrado por causa da desvantagem do terreno e a certeza de que iria haver muitas mortes. 

Na manhã em que o Cel. Fulgêncio foi baleado, fomos informados, pelo nosso Comandante de Pelotão, 2.º Tenente Santos Cavalcante, que o mesmo estava percorrendo toda a linha do flanco esquerdo do Túnel e que depois iria reunir os oficiais para determinar a hora do avanço.

Pouco depois, de dentro da trincheira, eu e os colegas Augusto Filgueiras e Manoel Esteves do Sacramento, vimos o Cel. Fulgêncio, que vinha por uma "picada" que servia de ligação entre as trincheiras, o qual, de repente, agachou-se, permanecendo nessa posição. 

Eu então disse aos companheiros – "Parece que o nosso comandante foi baleado" – e saímos os três, correndo, até junto do coronel e eu perguntei-lhe se estava ferido e ele, agachado como estava, com as mãos no abdômen, confirmou que sim e pediu que não comentássemos para não alarmar a tropa. 

Mandei o Soldado Esteves chamar, urgente, o Ten. Cavalcante e, ajudado pelo Augusto Fonseca, carregamos o Cel. Fulgêncio até um ângulo morto do terreno. 

Depois, com mais outros soldados, tivemos que transportá-lo em padiola até Manacá, de onde foi transportado, em caminhão, para Passa Quatro, para ser operado. Ao colocar o Cel. Fulgêncio no caminhão, dele nos despedimos e, quando lhe apertei a mão, em despedida, vi quando dos seus olhos desceram lágrimas.

De Manacá regressei à linha de frente, tendo antes passado no almoxarifado, recebendo um saco com oito bexigas de salame e algumas bisnagas de pão, para levar para os companheiros, pois a comida era escassa e difícil de levar. 

Três dias depois ficamos sabendo que nosso comandante havia falecido no Hospital de Passa Quatro. 

Eis um episódio, Coronel René, que acho que o Sr. gostará de incluir no seu próximo livro e que, apesar da simplicidade com que é narrado, merece ser publicado, pois que relembra a morte de um valente comandante e a bravura e a dedicação dos que constituíam a velha guarda da nossa P.M. e que tanto deram e fizeram para o seu justo renome. 

Com respeitosa estima e consideração, o Sub., camarada e amigo atencioso – (a) José Fortes Coutinho, Cap. P.M. QOR."

 

Quando assumi o Comando-Geral da Corporação, aquela ideia de como promover os revolucionários de 1924, 30 e 32, fazendo-lhes justiça, continuava a martelar em minha mente. Lembrava-me das conversas que ouvia, na minha infância, e tudo isso ficava mais impregnado em minha memória. Sabia que era, há muito, uma aspiração do nosso pessoal.

Sabia, sobretudo, que muitos Comandantes-Gerais, que me antecederam, lutaram bravamente, não medindo esforços, para que essa aspiração se concretizasse. Todos, porém, foram barrados por um empecilho legal. 

Naquele momento, porém, era eu o Comandante-Geral. Cabia a mim envidar todos os esforços possíveis, honrando meus antecessores, para descobrir e encontrar o instrumento jurídico que socorresse a nossa causa e transpusesse o possível obstáculo legal. 

Desistir Jamais! Retomaríamos o assunto.

Procurei, então, o Professor Aluízio Gonzaga Araújo, então Chefe da Assessoria Técnico-Consultiva do Estado de Minas Gerais. Este era o órgão do Governo que prestava assessoria jurídica ao Governador do Estado, emitindo pareceres sobre vetos, sanções e, também, preparava anteprojetos de lei a serem encaminhados à Assembleia Legislativa, entre várias outras tarefas importantes.

O Doutor Aloízio era professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Tornou-se, mais tarde, diretor dessa Escola, por dois mandatos. Tão sábio quanto simples. De tratamento ameno, meu amigo, tive com ele uma convivência harmoniosa, sem nenhum formalismo. Era também compreensivo, dedicado e tinha um grande saber jurídico.

Expus-lhe o assunto, e ele me disse que iria examiná-lo. Alguns dias depois, nos encontramos, em uma solenidade, e ele me disse:

– Coutinho, aquele problema da promoção dos revolucionários é impossível. Temos lá, na Assessoria, uma pilha de cinco metros de altura de processos sobre o mesmo assunto. Todas as conclusões foram de que a matéria é ilegal.

– Aloízio, disse-lhe eu, data maxima venia, essa não pode ser a resposta de um dos maiores e mais notáveis juristas do nosso Estado. Disto nós já sabíamos – o nosso tratamento era muito amistoso. O nosso desafio é encontrar um argumento jurídico que prove que a matéria não é ilegal. Peço-lhe, por gentileza, que continue procurando-o.

– Já que você insiste, continuarei. Disse-me ele.

Passados mais alguns dias, encontrei-me novamente com ele, no Palácio dos Despachos.

– Coutinho, parece-me que encontrei um caminho, uma saída jurídica para aquele problema. Seria tão simples, que mais me pareceu a descoberta do “Ovo de Colombo”. Consta do próprio estatuto de vocês que a promoção por ato de bravura não tem prazo estipulado e pode ser feita, inclusive, “post mortem”.

– Abracei-o, emocionado, e disse-lhe, instantaneamente: Doutor Professor Aloízio, você é um gênio! Vou repassar o assunto e examiná-lo internamente, mas acho também que é por aí. Conversaremos depois.

Nosso estatuto era regido pela Lei n. 5.301, de 16 de Outubro de 1969. Tratava, especifica e separadamente, da promoção de oficiais e de praças e preconizava, “in verbis”:

Art. 190.  A promoção por ato de bravura dispensa outras exigências legais, sendo facultada a partir do evento.

Parágrafo único. Em caso de falecimento será o oficial promovido “post mortem”.

Quanto à promoção de praças, repetia o mesmo, “verbis”:

Art. 216.  A promoção por ato de bravura dispensa outras exigências legais, sendo facultada a partir do evento.

Parágrafo único. Em caso de falecimento será a praça promovida “post mortem”.

Fiquei eufórico, porque tínhamos descoberto o caminho. Pensava eu, entretanto, que, “ad cautelam” e por mais segurança jurídica, não só do governo, como nossa também, seria necessária uma lei, aprovada pela Assembleia Legislativa. Fui novamente conversar com o Professor Aloízio. Disse-me ele que já tinha pensado nisso e que seria mesmo necessária uma lei.

Juntos, fomos ao Governador do Estado, expusemos nossas ideias e ele as aprovou.

Após alguns meses, o então Governador do nosso Estado, Dr. Francelino Pereira dos Santos, sancionou a Lei n. 8.070, de 3 de Outubro de 1981, que definiu, como ato de bravura, a efetiva participação dos integrantes da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais nas Revoluções de 1924, 1930 e 1932.

Para comemorar as promoções, fizemos uma belíssima solenidade na Academia – Nossa Casa Mãe, como eu a chamava –, estando o pátio lotado, com muitos companheiros da Velha Guarda, bem como muitas viúvas e muitos parentes dos nossos revolucionários.

Digo que foi um dos momentos mais marcantes e emocionantes do meu comando. Depois da solenidade, recebi muitos abraços. Os ombros da minha túnica ficaram, literalmente, molhados por copiosas lágrimas de velhos companheiros, de suas viúvas e de seus familiares. Lembremos que as viúvas foram também beneficiadas com o aumento da pensão do Instituto da Previdência – Caixa Beneficente, como o chamávamos à época. Mas não era só por isso que se emocionavam tanto. Emocionavam-se, sim, pelo resgate da memória de seus maridos. Várias delas disseram-me que, quando estavam reunidos em família, seus maridos ficavam relembrando aqueles fatos, contando as histórias e os perigos pelos quais passaram. Falavam também da indignação em relação à promoção extra, que nunca tinha chegado. Só mesmo quem passou pela Corporação sabe compreender a extensão deste sentimento.

No interior do Estado, as solenidades comemorativas foram feitas pelos comandos locais. Quando, porém, eu passava pelo interior, batalhões, companhias, pelotões ou até mesmo frações menores, quando sabiam da minha presença, muitos iam, emocionados, abraçar-me e agradecer-me, inclusive, com gestos muito emocionantes.

E foi assim que conseguimos a promoção dos revolucionários de 1924, 1930 e 1932.

Fica aí o meu lembrete, que costumava dizer à tropa: o passado é o penhor do presente e o impulsionador para o futuro.

Ao final, se me permitirem, fica minha exortação: honremos nossos antepassados, bravos de outrora. Foram eles que construíram as nobres e belas tradições que a Corporação, hoje, com muito orgulho, ostenta, e o povo de Minas Gerais muito admira e respeita.

“Os passos desses heróis são faróis”

 

Cel. Jair Cançado Coutinho – QOR


Comandante-Geral da PMMG : período de 1980 a 1983










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