A passagem para a reserva é uma
transição na carreira que ainda gera muitas dúvidas e inseguranças. Após
décadas de serviços prestados, a farda passa a ser nossa segunda pele e por
vezes é difícil se desvincular dela. Para falar um pouco mais sobre essa
transição, convidamos a veterana Sgt. Sandra, que trabalhou no PPR da 3ª Região.
Hoje, alguns anos após ir para a reserva, ela encontra-se em uma nova carreira e possui muitos
projetos em andamento. Confira como foi esse interessante e enriquecedor bate papo:
1- Entre as várias atividades que a senhora desenvolveu na
PM, está a atuação no PPR. Quais são suas considerações a respeito do Programa?
Esse trabalho te ajudou na sua própria preparação para a reserva?
Penso que o PPR é uma coisa boa
em tese. O que é o PPR: é preparar o pessoal para a inatividade - na verdade nem
gosto muito dessa palavra inatividade. Quando eu trabalhava na P5 eu preparava
os encontros e tudo mais, mas nos encontros havia muitas cobranças de horários,
obrigações etc. Pra mim, isso não era uma preparação para a reserva porque
mantinha uma rotina militar, e o PPR é para você se desvincular, desacelerar.
Se você fica assim: “Oh, em 10 min. tem que estar no ônibus, Fulano, faça
isso”; pra mim, o PPR não funciona desse jeito. No PPR eu observava a angústia
das pessoas, porque estava chegando ao fim, porque a gente cria uma identidade
né? E eu pensava assim: “Gente, vai chegar a minha vez!”. Então, ao mesmo tempo
que eu trabalhava com o pessoal, eu também me preparava, eu aproveitava tudo. A
gente chamava um psicólogo, um coach para dar palestra e falar que existe vida
após Polícia, e eu também pegava aquilo pra mim, fui me preparando ali no PPR.
2- O último PPR sofreu uma reformulação interessante, apresentando
muitos temas, inclusive empreendedorismo. Ele foi EAD, o que sofreu uma crítica
um pouco negativa, mas no que pese a questão da distância, o conteúdo foi muito
relevante. Como foi na sua época?
Eu não estou questionando o
conteúdo não, sabe? Até por que os conteúdos eram excelentes. Nós trabalhávamos
com empreendedorismo, em como a pessoa deveria lidar a questão financeira,
econômica e tal, porque é como se a pessoa estivesse voltando para casa. Os
conteúdos sempre foram ótimos, mas questiono a forma como eram conduzidos. Eu
adoro a hierarquia e disciplina, mas algumas pessoas confundiam isso com
subserviência, o que me deixava muito chateada. Os conteúdos em si eram ótimos,
tanto que aproveitei os conteúdos para minha vida pós polícia.
3- A senhora saiu da PM com 25 anos de efetivo serviço? Como
foi?
Sim. Na verdade, 25 anos de
polícia, mas eu já tinha 3 anos fora, averbado. Eu trabalho desde os 15 anos
fichada, porque antigamente podia, né?
4- Por trabalhar com o PPR você acabou identificando essa
necessidade de se preparar psicologicamente para a reserva. Quando finalmente
estava em casa, como foi? Qual foi a sensação, a reação e a decisão diante
disso?
Então, é uma mistura de
sentimentos, de euforia, né? De falar assim: “Poxa, agora eu tô em casa, vou
fazer as minhas coisas. Eu nunca deixei de fazer o que eu gosto por causa de
polícia, mas eu pensei: “Agora tenho
Liberdade de sair 8 horas da manhã e voltar 8 horas da noite sem ninguém ficar
me ligando e pedindo alguma coisa”.
Porque a gente estava sempre trabalhando né? Depois do WhatsApp então, nós
somos polícia, 24 horas. E aí o que acontece: eu acordei no outro dia com essa
sensação. Mas ao mesmo tempo eu pensava assim: poxa, meus amigos ficaram para
trás. Não é uma coisa fácil, tem que ter um preparo psicológico, é claro. Não é
uma coisa fácil de lidar, porque a minha vida foi construída toda dentro da
Polícia Militar, meus amigos são todos policiais militares, né? Tem alguns
amigos de faculdade e tudo, mas a minha convivência, era na Polícia Militar.
Então, não foi uma coisa assim: eu saí, virei as costas e não quero voltar
mais. Não. Ás vezes batia o arrependimento, mas depois eu pensava: “Não, eu
preciso seguir em frente”. E sabe por quê? Porque vai chegar a hora de todo
mundo sair e a gente precisa estar preparado para isso. E muitas vezes a gente
não está preparado. A gente se prepara
psicologicamente, você tem ali uma força, uma resiliência, mas bate aquela
saudade. Quando a gente vê um projeto, e pensa: “Nossa, tinha uma ideia
interessante para aquele projeto”, mas não está mais na Polícia. Então eu vou
continuar aqui com minha tarefa, porque vai chegar um momento que vai acabar
mesmo.
5- Como foi depois de decidir que tinha que seguir em
frente? Você buscou o que fazer, ou já tinha a vivência da atividade que exerce
hoje?
Tem uma coisa que eu que eu amo
fazer, que é incentivar pessoas. Eu gosto de olhar para a Luiza e falar assim: “Luiza pode oferecer mais do que ser só sargento”. Então essa minha vontade de
querer ajudar as pessoas que me fez escolher a aromaterapia: para eu começar a
ajudar as pessoas dentro de casa. A gente tem que olhar primeiro para dentro da
nossa casa, né? A gastronomia eu fiz quando estava dentro da polícia
ainda. Na gastronomia eu queria colocar
a aromaterapia, porque eu gosto de coisas naturais. Quando eu estava saindo da
PM, eu pensei assim: “Eu tenho que escolher uma coisa que eu vou ajudar
pessoas”, e aí eu escolhi o curso de estética e cosmética, porque assim eu
estaria próxima às pessoas. Eu ganho dinheiro com estética e cosmética? Ganho,
mas eu tenho um trabalho social também, que eu gosto de fazer. A Biomedicina
foi em decorrência da estética, para reforçar a preparação. Eu fiz a estética e
cosmética para trabalhar com a aromaterapia, fiz a podologia e me especializei
em pé diabético, porque eu tenho uma irmã diabética, e por fim, a Biomedicina,
mas sempre assim: olhando o que eu poderia fazer pra ajudar o outro, sabe?
6- Você tem contato com pessoas que estão nessa transição e
que identificaram dificuldades durante esse processo? Pessoas que você orientou
baseada em sua experiência?
Então, estou até com um projeto
aí... tem que ter um projeto, né? Depois que eu saí, outros policiais - e aqui
eu estou pensando mais nas mulheres, porque são as que ainda convivem comigo -
tiveram muitos problemas de ansiedade e depressão quando saíram, e me
procuraram para conversar. Reuni elas aqui e falei assim: “Vou fazer um projeto
com vocês: eu vou ensinar vocês fazer trabalhos manuais de arte e artesanato e
nós vamos fazer uma exposição”. E agora
o projeto está para se tornar uma associação para ajudar as policiais femininas
que saíram. Porque a pessoa muitas vezes se sente inútil, pensa que trabalhou a vida
toda na polícia, e que não sabe fazer mais nada. Sabe, é só gente incentivar! É
aquilo que eu falei: eu olho para a
Camila, eu olho para Luiza, e vejo mais do que elas são. A gente vê o outro
além. Então comecei a ensiná-las a fazer sabonete, a fazer uma pintura, uma
arte e a gente tá querendo montar uma associação de mulheres policiais da
reserva e fazer uma feira de artesanato.
7- É um projeto muito legal! O artesanato nos conecta a nós
mesmos e nos faz redescobrir a nossa identidade.
A intenção é um pouco isso, sabe.
Inclusive, graças a Deus, tem umas coisas que já estão mudando, e é bom quando
a gente percebe isso.
8- Em qualquer emprego é importante tem esse preparo desde o
início: saber que aquilo tem um início e um fim e que o fim vai chegar em algum
momento, certo?
Sim. E o fim não é
necessariamente o fim de todas as coisas, ele pode ser o início de muitas
outras. Como foi o meu caso: foi o fim da Polícia, mas o início de uma nova
etapa, uma nova carreira. Eu falo que eu troquei de farda: agora eu uso branco
eu não uso o bege. É o fim de uma carreira, mas início de uma outra. Não
significa que acabou. E aí eu pensei em trabalhar com as mulheres porque tem
muita gente deprimida, com problemas de ansiedade, que viveram a vida para a Polícia e agora a gente não pode abandonar.
9- Na contramão dessas pessoas que tiveram maior dificuldade
também temos pessoas que conseguiram fazer uma transição com tranquilidade,
suavidade, seguindo outros rumos.
É, mas a gente tem que analisar
isso, porque eu percebo que tem gente que conseguiu desvincular, e está no
outro processo, mas quantos por cento?
10- O percentual ainda não se sabe, mas percebemos que está
havendo um aumento, o que é positivo. As pessoas estão começando a entender o
processo, no que pese ainda ter uma parcela relevante de pessoas que ainda
precisam desse incentivo.
Eu acho que é só um incentivo que
é preciso. É despertar, sabe? Falar assim: “Espera aí, a senhora pode fazer um
sabonete comigo”. Às vezes a pessoa me procura falando que precisa fazer alguma
coisa e daí eu chamo para conversar, pergunto o que que ela gosta de fazer. Se
a pessoa gosta de comer, ela pode trabalhar fazendo comida. Se gosta de correr,
pode fazer uma faculdade de Educação física ou montar um projeto de educação
física. Eu procuro saber o que ela gosta para trabalhar em cima daquilo, pra
gente ter um sucesso.
A gente fazia um projeto lá no
Palmital que foi assim. Não existia PVD lá ainda, eu trabalhava com análise
criminal e observei que nós estávamos com altos índices de violência contra a
mulher. Falei com o comandante que eu gostaria de visitar essas mulheres. Ele
falou que eu poderia ir. Aí eu fui com o Capitão. Quando chegamos na casa de
determinadas mulheres, a gente via que muitas vezes a mulher não tinha emprego,
era dependente financeiramente, ou psicologicamente. Então eu fui na igreja,
conversei com o padre, dizendo que eu era especialista em gastronomia e que precisava de usar a cozinha. Ele perguntou o porquê, e eu disse que tinha um
projeto para ajudar as mulheres vítimas de violência, que iria ensiná-las a cozinhar. Fui a hotéis e motéis da
região para pedir uma vaga de estágio pra essas mulheres. Algumas dessas
mulheres trabalham nesses hotéis até hoje. Então, o que que precisa? De um
incentivo. Perguntar: qual é o seu potencial? Essa pessoa certamente tem algum potencial.
11- Muito obrigada, Sgt Sandra, por compartilhar um pouco da sua
experiência conosco! Ficamos muito satisfeitas com essa entrevista e desejamos
muito sucesso na sua nova carreira!
Além de todas as formações mencionadas durante a entrevista, a Sgt. Sandra também é historiadora e autora do livro "Ser mulher e policial", lançado em 2021. Mesmo após sua saída da PM, ela continua dedicando sua experiência e habilidades para apoiar diversas atividades realizadas na Instituição. Nesse ano, por exemplo, a Sgt. Sandra realizou o trabalho de restauração da bandeira da primeira Companhia de Polícia Feminina da PMMG, um dos itens de acervo que farão parte da exposição histórica em comemoração aos 248 anos da PMMG.
Gostaríamos de registrar toda nossa gratidão à Sgt. Sandra e a todos os veteranos e veteranas que sempre honraram o compromisso da PMMG com a segurança! É devido a homens e mulheres como os senhores que a PMMG completa 248 anos como uma das mais sólidas e respeitadas Instituições do país!
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