13 junho, 2023

Vida de caserna: entrevista com a veterana Sandra Margarete

 

A passagem para a reserva é uma transição na carreira que ainda gera muitas dúvidas e inseguranças. Após décadas de serviços prestados, a farda passa a ser nossa segunda pele e por vezes é difícil se desvincular dela. Para falar um pouco mais sobre essa transição, convidamos a veterana Sgt. Sandra, que trabalhou no PPR da 3ª Região. Hoje, alguns anos após ir para a reserva, ela encontra-se em uma nova carreira e possui muitos projetos em andamento. Confira como foi esse interessante e enriquecedor bate papo:

 

1-            Entre as várias atividades que a senhora desenvolveu na PM, está a atuação no PPR. Quais são suas considerações a respeito do Programa? Esse trabalho te ajudou na sua própria preparação para a reserva?

 

Penso que o PPR é uma coisa boa em tese. O que é o PPR: é preparar o pessoal para a inatividade - na verdade nem gosto muito dessa palavra inatividade. Quando eu trabalhava na P5 eu preparava os encontros e tudo mais, mas nos encontros havia muitas cobranças de horários, obrigações etc. Pra mim, isso não era uma preparação para a reserva porque mantinha uma rotina militar, e o PPR é para você se desvincular, desacelerar. Se você fica assim: “Oh, em 10 min. tem que estar no ônibus, Fulano, faça isso”; pra mim, o PPR não funciona desse jeito. No PPR eu observava a angústia das pessoas, porque estava chegando ao fim, porque a gente cria uma identidade né? E eu pensava assim: “Gente, vai chegar a minha vez!”. Então, ao mesmo tempo que eu trabalhava com o pessoal, eu também me preparava, eu aproveitava tudo. A gente chamava um psicólogo, um coach para dar palestra e falar que existe vida após Polícia, e eu também pegava aquilo pra mim, fui me preparando ali no PPR.

 

 

2-            O último PPR sofreu uma reformulação interessante, apresentando muitos temas, inclusive empreendedorismo. Ele foi EAD, o que sofreu uma crítica um pouco negativa, mas no que pese a questão da distância, o conteúdo foi muito relevante. Como foi na sua época?

 

Eu não estou questionando o conteúdo não, sabe? Até por que os conteúdos eram excelentes. Nós trabalhávamos com empreendedorismo, em como a pessoa deveria lidar a questão financeira, econômica e tal, porque é como se a pessoa estivesse voltando para casa. Os conteúdos sempre foram ótimos, mas questiono a forma como eram conduzidos. Eu adoro a hierarquia e disciplina, mas algumas pessoas confundiam isso com subserviência, o que me deixava muito chateada. Os conteúdos em si eram ótimos, tanto que aproveitei os conteúdos para minha vida pós polícia.

 

3-            A senhora saiu da PM com 25 anos de efetivo serviço? Como foi?

Sim. Na verdade, 25 anos de polícia, mas eu já tinha 3 anos fora, averbado. Eu trabalho desde os 15 anos fichada, porque antigamente podia, né?

 

4-            Por trabalhar com o PPR você acabou identificando essa necessidade de se preparar psicologicamente para a reserva. Quando finalmente estava em casa, como foi? Qual foi a sensação, a reação e a decisão diante disso?

Então, é uma mistura de sentimentos, de euforia, né? De falar assim: “Poxa, agora eu tô em casa, vou fazer as minhas coisas. Eu nunca deixei de fazer o que eu gosto por causa de polícia,  mas eu pensei: “Agora tenho Liberdade de sair 8 horas da manhã e voltar 8 horas da noite sem ninguém ficar me ligando e pedindo alguma coisa”.  Porque a gente estava sempre trabalhando né? Depois do WhatsApp então, nós somos polícia, 24 horas. E aí o que acontece: eu acordei no outro dia com essa sensação. Mas ao mesmo tempo eu pensava assim: poxa, meus amigos ficaram para trás. Não é uma coisa fácil, tem que ter um preparo psicológico, é claro. Não é uma coisa fácil de lidar, porque a minha vida foi construída toda dentro da Polícia Militar, meus amigos são todos policiais militares, né? Tem alguns amigos de faculdade e tudo, mas a minha convivência, era na Polícia Militar. Então, não foi uma coisa assim: eu saí, virei as costas e não quero voltar mais. Não. Ás vezes batia o arrependimento, mas depois eu pensava: “Não, eu preciso seguir em frente”. E sabe por quê? Porque vai chegar a hora de todo mundo sair e a gente precisa estar preparado para isso. E muitas vezes a gente não está preparado. A gente se  prepara psicologicamente, você tem ali uma força, uma resiliência, mas bate aquela saudade. Quando a gente vê um projeto, e pensa: “Nossa, tinha uma ideia interessante para aquele projeto”, mas não está mais na Polícia. Então eu vou continuar aqui com minha tarefa, porque vai chegar um momento que vai acabar mesmo.

 

5-            Como foi depois de decidir que tinha que seguir em frente? Você buscou o que fazer, ou já tinha a vivência da atividade que exerce hoje?

 

Tem uma coisa que eu que eu amo fazer, que é incentivar pessoas. Eu gosto de olhar para a Luiza e falar assim: “Luiza pode oferecer mais do que ser só sargento”. Então essa minha vontade de querer ajudar as pessoas que me fez escolher a aromaterapia: para eu começar a ajudar as pessoas dentro de casa. A gente tem que olhar primeiro para dentro da nossa casa, né? A gastronomia eu fiz quando estava dentro da polícia ainda.  Na gastronomia eu queria colocar a aromaterapia, porque eu gosto de coisas naturais. Quando eu estava saindo da PM, eu pensei assim: “Eu tenho que escolher uma coisa que eu vou ajudar pessoas”, e aí eu escolhi o curso de estética e cosmética, porque assim eu estaria próxima às pessoas. Eu ganho dinheiro com estética e cosmética? Ganho, mas eu tenho um trabalho social também, que eu gosto de fazer. A Biomedicina foi em decorrência da estética, para reforçar a preparação. Eu fiz a estética e cosmética para trabalhar com a aromaterapia, fiz a podologia e me especializei em pé diabético, porque eu tenho uma irmã diabética, e por fim, a Biomedicina, mas sempre assim: olhando o que eu poderia fazer pra ajudar o outro, sabe?

 

6-            Você tem contato com pessoas que estão nessa transição e que identificaram dificuldades durante esse processo? Pessoas que você orientou baseada em sua experiência?

 

Então, estou até com um projeto aí... tem que ter um projeto, né? Depois que eu saí, outros policiais - e aqui eu estou pensando mais nas mulheres, porque são as que ainda convivem comigo - tiveram muitos problemas de ansiedade e depressão quando saíram, e me procuraram para conversar. Reuni elas aqui e falei assim: “Vou fazer um projeto com vocês: eu vou ensinar vocês fazer trabalhos manuais de arte e artesanato e nós vamos fazer uma exposição”.  E agora o projeto está para se tornar uma associação para ajudar as policiais femininas que saíram. Porque a pessoa muitas vezes se sente inútil, pensa que trabalhou a vida toda na polícia, e que não sabe fazer mais nada. Sabe, é só gente incentivar! É aquilo que eu falei:  eu olho para a Camila, eu olho para Luiza, e vejo mais do que elas são. A gente vê o outro além. Então comecei a ensiná-las a fazer sabonete, a fazer uma pintura, uma arte e a gente tá querendo montar uma associação de mulheres policiais da reserva e fazer uma feira de artesanato.

 

7-            É um projeto muito legal! O artesanato nos conecta a nós mesmos e nos faz redescobrir a nossa identidade.

 

A intenção é um pouco isso, sabe. Inclusive, graças a Deus, tem umas coisas que já estão mudando, e é bom quando a gente percebe isso.

 

8-            Em qualquer emprego é importante tem esse preparo desde o início: saber que aquilo tem um início e um fim e que o fim vai chegar em algum momento, certo?

 

Sim. E o fim não é necessariamente o fim de todas as coisas, ele pode ser o início de muitas outras. Como foi o meu caso: foi o fim da Polícia, mas o início de uma nova etapa, uma nova carreira. Eu falo que eu troquei de farda: agora eu uso branco eu não uso o bege. É o fim de uma carreira, mas início de uma outra. Não significa que acabou. E aí eu pensei em trabalhar com as mulheres porque tem muita gente deprimida, com problemas de ansiedade, que viveram a vida para a Polícia e agora a gente não pode abandonar.

 

9-            Na contramão dessas pessoas que tiveram maior dificuldade também temos pessoas que conseguiram fazer uma transição com tranquilidade, suavidade, seguindo outros rumos.

 

É, mas a gente tem que analisar isso, porque eu percebo que tem gente que conseguiu desvincular, e está no outro processo, mas quantos por cento?

 

10-         O percentual ainda não se sabe, mas percebemos que está havendo um aumento, o que é positivo. As pessoas estão começando a entender o processo, no que pese ainda ter uma parcela relevante de pessoas que ainda precisam desse incentivo.

 

Eu acho que é só um incentivo que é preciso. É despertar, sabe? Falar assim: “Espera aí, a senhora pode fazer um sabonete comigo”. Às vezes a pessoa me procura falando que precisa fazer alguma coisa e daí eu chamo para conversar, pergunto o que que ela gosta de fazer. Se a pessoa gosta de comer, ela pode trabalhar fazendo comida. Se gosta de correr, pode fazer uma faculdade de Educação física ou montar um projeto de educação física. Eu procuro saber o que ela gosta para trabalhar em cima daquilo, pra gente ter um sucesso.

 

A gente fazia um projeto lá no Palmital que foi assim. Não existia PVD lá ainda, eu trabalhava com análise criminal e observei que nós estávamos com altos índices de violência contra a mulher. Falei com o comandante que eu gostaria de visitar essas mulheres. Ele falou que eu poderia ir. Aí eu fui com o Capitão. Quando chegamos na casa de determinadas mulheres, a gente via que muitas vezes a mulher não tinha emprego, era dependente financeiramente, ou psicologicamente. Então eu fui na igreja, conversei com o padre, dizendo que eu era especialista em gastronomia e que precisava de usar a cozinha. Ele perguntou o porquê, e eu disse que tinha um projeto para  ajudar as mulheres vítimas de violência, que iria ensiná-las a cozinhar. Fui a hotéis e motéis da região para pedir uma vaga de estágio pra essas mulheres. Algumas dessas mulheres trabalham nesses hotéis até hoje. Então, o que que precisa? De um incentivo. Perguntar: qual é o seu potencial? Essa pessoa certamente tem algum potencial.

 

11-         Muito obrigada, Sgt Sandra, por compartilhar um pouco da sua experiência conosco! Ficamos muito satisfeitas com essa entrevista e desejamos muito sucesso na sua nova carreira!


Além de todas as formações mencionadas durante a entrevista, a Sgt. Sandra também é historiadora e autora do livro "Ser mulher e policial", lançado em 2021. Mesmo após sua saída da PM, ela continua dedicando sua experiência e habilidades para apoiar diversas atividades realizadas na Instituição. Nesse ano, por exemplo, a Sgt. Sandra realizou o trabalho de restauração da bandeira da primeira Companhia de Polícia Feminina da PMMG, um dos itens de acervo que farão parte da exposição histórica em comemoração aos 248 anos da PMMG. 





Gostaríamos de registrar toda nossa gratidão à Sgt. Sandra e a todos os veteranos e veteranas que sempre honraram o compromisso da PMMG com a segurança! É devido a homens e mulheres como os senhores que a PMMG completa 248 anos como uma das mais sólidas e respeitadas Instituições do país!


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